Por André Setaro
Obra de teor realista, baseada em livro homônimo de Herberto Sales, Cascalho, no entanto, tem seu fecho numa dimensão onírica e poética, quando o garimpeiro, que morre no desabamento das minas pelo temporal imprevisto, aparece todo galante e fagueiro, a entrar num salão e a festejar uma bela garota com a qual executa uma dança. Tuna Espinheira é feliz no fecho de seu filme, neste desvio de tom, o que faz acrescentar um halo poético numa obra de tonalidades cruas e realísticas. A execução da dita seqüência se faz em câmara lenta, e a iluminação (de Luís Abramo) dá os toques necessários para estabelecer a atmosfera de sonho. Que é favorecida também pela aplicada direção de arte de Moacyr Gramacho.
Vencedor do Prêmio Fernando Cony Campos, patrocinado pelo governo do estado da Bahia, que ofereceu recursos mínimos para a feitura de um longa metragem, Cascalho já está pronto desde 2004, mas somente agora, quatro anos depois, e depois de muita luta, é que Tuna Espinheira preencheu todos os requisitos para a sua exibição em circuito comercial. Para entrar nas melhores salas do mercado exibidor, há a necessidade do som Dolby digital.
Documentarista de longo curso, Tuna Espinheira revela em Cascalho a sua influência no registro realista tão cara ao documentário. Filmado in loco, no esplendor do décor de Andaraí, o filme se desdobra para contar uma história de sofrimento e dor sob a égide da brutalidade dos coronéis, que controlam tudo e exploram os que se aventuram no garimpo. Nem os poderes constituídos, como o juiz e o promotor, podem fazer frente à sua sanha autoritária para subjugar a gente humilde.
O início de Cascalho, com os garimpeiros a andar pelas imensas pedras em fila indiana, dá a idéia da dimensão e riqueza paisagísticas da região, como se aqueles homens fossem escravos e estivessem a construir uma pirâmide. O registro cinematográfico de Tuna Espinheira, a revelar sua formação de documentarista, procura uma fabulação que faz emergir a truculência daqueles que a tudo controlam e a luta desesperada dos garimpeiros para extrair do cascalho uma porção de sobrevivência.
A reconstituição de época, considerando que a ação do filme se passa na década de 30, ainda que os parcos recursos disponíveis, é satisfatória, quer do ponto de vista cenográfico como, também, nos figurinos, principalmente na seqüência do enterro. Os planos noturnos que mostram a rotina dos garimpeiros também conseguem imprimir uma sensação de esmagamento e ao mesmo tempo de uma poesia da gente simples com sua linguajar próprio, com a sua maneira de expressar não somente o sentimento como também a sua dor.
A ação se localiza no crepúsculo de uma época de ouro, quando em Andaraí se extraia diamantes e carbonatos, a enriquecer os donos do poder da região, os coronéis, e a escravizar a população de garimpeiros, que, iludidos pela possibilidade de encontrar as pedras preciosas, e mudar de vida, tornavam-se verdadeiros escravos da ganância e da ambição daqueles que controlavam a localidade. O personagem maior do filme é, na verdade, o garimpeiro sob a ditadura dos coronéis. Herberto Sales, escritor e acadêmico, conheceu o drama dos garimpeiros e procurou registrá-lo no célebre romance do qual Tuna Espinheira, em adaptação livre, extraiu o seu filme.
Othon Bastos é o coronel que manda em tudo, insensível e cruel, assim como seus acólitos, subservientes, os personagens de Wilson Mello (que tosse o tempo todo como a expelir o demônio interior), Harildo Dêda. Irving São Paulo, promotor neófito que pensa que pode mudar alguma coisa, e, difamado, é posto a correr da cidade após um diálogo que revela o conformismo do juiz interpretado por Fernando Neves. Gildásio Leite (o grande ator dos palcos baianos de outrora - quem se lembra dele em O cão siamês de Alzira Power no Teatro Gamboa?) é um pobre garimpeiro, e Jorge Coutinho, a personagem mais carismática de Cascalho, é um cruel capataz de Bastos, homem ambíguo e capaz de tudo. Outros intérpretes: Caco Monteiro, Dody Só, Lúcio Tranchesi, Júlio Goes e, em participação especial, a filha de Tuna, a exuberante Maria Rosa Espinheira.
Esta não é a primeira versão do livro de Herberto Sales. Há uma de autoria de um estrangeiro, Leo Marten, um tcheco que após realizar vários filmes em Praga veio ao Brasil para fazer cinema (Vamos cantar, 1941, Almas adversas, 1949, Jardim do pecado, 1946, entre outras insignificâncias). Seu Cascalho é de 1950, e conta no elenco com Sadi Cabral, Sérgio de Oliveira, Jackson de Souza, Modesto de Souza, José Lewgoy.
Cascalho, de Tuna Espinheira, representa uma vitória para o cinema baiano. Segundo José Umberto, cineasta (O anjo negro, Revoada...), "Cascalho é o cinema baiano da gema: lembra-me a tradição de Um dia na rampa - um cinema popular. Eis o eixo: sentimos na imagem o sotaque do povo. Não faz nada mal relembrarmos os princípios éticos e poéticos de Brecht. Brecht buscou alento sobretudo no teatro catequista da Idade Média. Uma arte edificante. Que toma partido: o partido da gente simples, ofendida e humilhada como as personagens de Dostoievski. Tuna quis ser fiel ao escritor Herberto Sales. E também fiel a si mesmo. Não é um filme cínico (tão caro à "globalização""!). Não. É uma fita simples, como a filmografia de Rossellini. Uma arte em defesa da ética. Um discurso humanista. Pense no Brasil em 1930. Vem uma geração e desconserta o parnasianismo: Cascalho de Salles, BA, Os Corumbas, Amando Fontes, SE e O Quinze de Racquel de Queirós, CE. Foi uma bomba, rapaz! E teve muitas conseqüências na cultura brasileira. Tivemos Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre eFormação Econômica do Brasil de Caio Prado Júnior. Essas obras montaram a modernidade. Deram sinais preciosos de interpretação de uma Nação que descobria a modernidade com uma ditadura tupiniquim. Aprendemos debaixo de porrete. Tuna tem visão."
Vencedor do Prêmio Fernando Cony Campos, patrocinado pelo governo do estado da Bahia, que ofereceu recursos mínimos para a feitura de um longa metragem, Cascalho já está pronto desde 2004, mas somente agora, quatro anos depois, e depois de muita luta, é que Tuna Espinheira preencheu todos os requisitos para a sua exibição em circuito comercial. Para entrar nas melhores salas do mercado exibidor, há a necessidade do som Dolby digital.
Documentarista de longo curso, Tuna Espinheira revela em Cascalho a sua influência no registro realista tão cara ao documentário. Filmado in loco, no esplendor do décor de Andaraí, o filme se desdobra para contar uma história de sofrimento e dor sob a égide da brutalidade dos coronéis, que controlam tudo e exploram os que se aventuram no garimpo. Nem os poderes constituídos, como o juiz e o promotor, podem fazer frente à sua sanha autoritária para subjugar a gente humilde.
O início de Cascalho, com os garimpeiros a andar pelas imensas pedras em fila indiana, dá a idéia da dimensão e riqueza paisagísticas da região, como se aqueles homens fossem escravos e estivessem a construir uma pirâmide. O registro cinematográfico de Tuna Espinheira, a revelar sua formação de documentarista, procura uma fabulação que faz emergir a truculência daqueles que a tudo controlam e a luta desesperada dos garimpeiros para extrair do cascalho uma porção de sobrevivência.
A reconstituição de época, considerando que a ação do filme se passa na década de 30, ainda que os parcos recursos disponíveis, é satisfatória, quer do ponto de vista cenográfico como, também, nos figurinos, principalmente na seqüência do enterro. Os planos noturnos que mostram a rotina dos garimpeiros também conseguem imprimir uma sensação de esmagamento e ao mesmo tempo de uma poesia da gente simples com sua linguajar próprio, com a sua maneira de expressar não somente o sentimento como também a sua dor.
A ação se localiza no crepúsculo de uma época de ouro, quando em Andaraí se extraia diamantes e carbonatos, a enriquecer os donos do poder da região, os coronéis, e a escravizar a população de garimpeiros, que, iludidos pela possibilidade de encontrar as pedras preciosas, e mudar de vida, tornavam-se verdadeiros escravos da ganância e da ambição daqueles que controlavam a localidade. O personagem maior do filme é, na verdade, o garimpeiro sob a ditadura dos coronéis. Herberto Sales, escritor e acadêmico, conheceu o drama dos garimpeiros e procurou registrá-lo no célebre romance do qual Tuna Espinheira, em adaptação livre, extraiu o seu filme.
Othon Bastos é o coronel que manda em tudo, insensível e cruel, assim como seus acólitos, subservientes, os personagens de Wilson Mello (que tosse o tempo todo como a expelir o demônio interior), Harildo Dêda. Irving São Paulo, promotor neófito que pensa que pode mudar alguma coisa, e, difamado, é posto a correr da cidade após um diálogo que revela o conformismo do juiz interpretado por Fernando Neves. Gildásio Leite (o grande ator dos palcos baianos de outrora - quem se lembra dele em O cão siamês de Alzira Power no Teatro Gamboa?) é um pobre garimpeiro, e Jorge Coutinho, a personagem mais carismática de Cascalho, é um cruel capataz de Bastos, homem ambíguo e capaz de tudo. Outros intérpretes: Caco Monteiro, Dody Só, Lúcio Tranchesi, Júlio Goes e, em participação especial, a filha de Tuna, a exuberante Maria Rosa Espinheira.
Esta não é a primeira versão do livro de Herberto Sales. Há uma de autoria de um estrangeiro, Leo Marten, um tcheco que após realizar vários filmes em Praga veio ao Brasil para fazer cinema (Vamos cantar, 1941, Almas adversas, 1949, Jardim do pecado, 1946, entre outras insignificâncias). Seu Cascalho é de 1950, e conta no elenco com Sadi Cabral, Sérgio de Oliveira, Jackson de Souza, Modesto de Souza, José Lewgoy.
Cascalho, de Tuna Espinheira, representa uma vitória para o cinema baiano. Segundo José Umberto, cineasta (O anjo negro, Revoada...), "Cascalho é o cinema baiano da gema: lembra-me a tradição de Um dia na rampa - um cinema popular. Eis o eixo: sentimos na imagem o sotaque do povo. Não faz nada mal relembrarmos os princípios éticos e poéticos de Brecht. Brecht buscou alento sobretudo no teatro catequista da Idade Média. Uma arte edificante. Que toma partido: o partido da gente simples, ofendida e humilhada como as personagens de Dostoievski. Tuna quis ser fiel ao escritor Herberto Sales. E também fiel a si mesmo. Não é um filme cínico (tão caro à "globalização""!). Não. É uma fita simples, como a filmografia de Rossellini. Uma arte em defesa da ética. Um discurso humanista. Pense no Brasil em 1930. Vem uma geração e desconserta o parnasianismo: Cascalho de Salles, BA, Os Corumbas, Amando Fontes, SE e O Quinze de Racquel de Queirós, CE. Foi uma bomba, rapaz! E teve muitas conseqüências na cultura brasileira. Tivemos Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre eFormação Econômica do Brasil de Caio Prado Júnior. Essas obras montaram a modernidade. Deram sinais preciosos de interpretação de uma Nação que descobria a modernidade com uma ditadura tupiniquim. Aprendemos debaixo de porrete. Tuna tem visão."
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